A maneira como policiais militares de Porto Alegre (RS) abordaram um motoboy negro e um morador branco à frente de um prédio virou notícia nos principais jornais nas últimas semanas. A repercussão foi iniciada na internet a partir de um vídeo em que se ouve transeuntes acusando os oficiais de racismo contra o entregador de aplicativo, que teria sido esfaqueado pelo homem. A sindicância da brigada militar apurou e negou qualquer abuso por parte dos policiais. Mas o fato é que, se não houvesse um celular gravando o episódio, a abordagem passaria despercebida e não seria assunto de debate.
Quando são usadas com responsabilidade, as novas tecnologias têm tido um papel fundamental para colocar em evidência situações que por séculos aconteciam, mas que tampouco eram tratadas com significância. Exemplos não faltam. Ainda neste mês, as redes sociais ajudaram a repercutir a ocorrência em que um casal homoafetivo foi atacado por uma mulher com insultos homofóbicos em uma padaria no centro da cidade de São Paulo. Após ser identificada pelas imagens, ela foi intimada a prestar depoimento.
Para os nostálgicos de um mundo predominantemente analógico, é recorrente o discurso que demoniza os recursos digitais, principalmente a internet, como se esta tivesse desvirtuado preceitos morais das relações interpessoais. De fato, a internet pode ter dado mais visibilidade e alcance a discursos preconceituosos, desrespeitosos e antiéticos. Mas, por outro lado, também permitiu que mais vozes fossem ouvidas, jogando luz sobre preconceitos antes velados.
Essa utilização de recursos audiovisuais para evidenciar injustiças sociais já vem sendo observado na última década. Segundo o relatório Vídeo como Prova Jurídica para Defesa dos Direitos Humanos no Brasil, divulgado pelas organizações Artigo 19 e Witness em 2015, essa mídia é essencial para expor episódios de violações aos direitos humanos. Com a evolução na qualidade das câmeras dos smartphones e a expansão do acesso à internet no país, mais casos passaram a ser baseados em vídeos como ferramenta jurídica.
O fenômeno se intensifica ao passo que os próprios celulares se multiplicam no cotidiano. Segundo estudo publicado pela Fundação Getúlio Vargas em 2023, há 1,2 smartphone por habitante no país, totalizando 249 milhões de celulares com câmera em uso. Assim, não dá para negar que essas ferramentas digitais têm o potencial de dar autonomia ao cidadão que agora pode testemunhar fatos que muitas vezes não ganhavam os holofotes do noticiário e divulgá-los pelo seu dispositivo para um público particular.
Claro que há o perigo em relação a qualidade dessas informações que são geradas, mas também há um ganho no exercício da cidadania. Nesse cenário, a educação midiática se apresenta como fundamental. Gravar situações do cotidiano se tornou um hábito, mas nem todo vídeo pode ser divulgado nas redes sociais por incluir o direito de imagem de cada indivíduo ou a necessidade de proteger crianças e adolescentes da exposição, por exemplo. O letramento midiático promove o domínio de habilidades técnicas e senso crítico justamente para aprender a lidar com situações que se colocam em meio a debates éticos. Ainda, tem como objetivo emancipar a população para que consiga identificar o mau uso dessas ferramentas, como vídeos manipulados e publicados em contexto duvidoso.
Reconhecer os benefícios dos recursos tecnológicos não deve ser visto como expressão de uma suposta ignorância. Afinal, por meio da educação midiática, é possível extrair o que há de positivo das novas mídias sem um binarismo raso. O celular e as redes sociais são um bom exemplo de como podem contribuir para ajudar a combater injustiças sociais. Usá-los de maneira responsável, crítica e respeitosa pode trazer resultados e mudanças significativas para toda a sociedade. Como qualquer remédio, a forma como elas são manuseadas faz toda diferença para seu efeito.
(Foto: Ksenia Chernaya/Pexels)